segunda-feira, 25 de janeiro de 2016

Abertura do I Colóquio de Museus Rurais do Sul

Muito Bom dia a todos
Em nome do Museu da Ruralidade, da Câmara Municipal de Castro Verde e do Grupo de Trabalho de Criação da Rede de Museus Rurais do Sul desejo-vos um bom dia e uma boa estadia nestas terras do Campo Branco, no I Colóquio de Museus Rurais do Sul.
Há alguns anos a trabalhar em temáticas ligadas à Ruralidade e ao mundo rural, seja no âmbito do desenvolvimento local, seja da museologia, temos chocado insistentemente, e perante a procura de informação sobre os mais diversos temas da história recente, na inexistência de conhecimento suficiente, específico e objectivo, para a região onde nos encontramos, sobre a temática que desenvolvemos e, sobretudo, em torno das problemáticas emergentes de âmbito rural que são a base da sociedade do interior em que vivemos.

Na ausência de uma memória viva que clarifique as nossas necessidades informativas, que nos diga “o como era naquele tempo”, falta-nos de igual modo o suporte do saber universitário “do imediato”, cuja repercussão, raramente nos chega;
falta-nos em cada museu, ou se quisermos nestes espaços de representação museográfica, já que o conceito de museu torna-se cada vez mais afunilado e algo aristocratizado, uma equipa suficiente para investigar, registar, mostrar;
falta uma política de informação e de comunicação entre museus que nos permita saber o que cada um, mesmo a nível regional, anda ou pretende fazer de forma a criar laços de entreajuda que sejam paliativos para tanto deficit. E se, em algumas iniciativas recentes, como são os casos da Rede de Museus do Distrito de Beja ou o NUOME, são preenchidas algumas lacunas particulares, sobretudo no que concerne à comunicação e às abordagens ao património imaterial, há um problema de fundo que é necessário resolver e que passa, sobretudo pela questão do método de trabalho e da regularidade do trabalho realizado.

No passado dia 16 de Outubro, simbolicamente no dia primeiro da Feira de Castro, juntaram-se em Entradas, no espaço do Núcleo da Oralidade do Museu da Ruralidade, sete museus da nossa região, com o objectivo de discutir a criação de uma rede informal de museus que tem como objecto principal o mundo rural e, sobretudo, seja um instrumento de trabalho daqueles que trabalham a memória recente, os seus actores e as suas geografias sociais, incluindo a diáspora.

Museu da Ruralidade (Castro Verde), Museu do Trabalho Rural da Abela (Santiago do Cacém), Núcleo Museológico de Alcaria de Javazes (Mértola), Núcleo Rural de Ervidel (Aljustrel), Museu da Farinha (S. Domingos - Santiago do Cacém), Museu Arqueológico e Etnográfico de Santa Clara-a-Nova (Almodôvar) e Museu Rural de Pias (Serpa) foram o grupo génese desta Rede de Museus Rurais do Sul cuja filosofia se pretende que assente na realização de encontros/colóquios/reuniões de caracter trimestral ou quadrimestral, onde cada museu apresenta um tema em que está a trabalhar; mostra, contextualiza, descreve uma peça; apresenta uma história de vida, o estudo de uma fotografia, a exposição que está a preparar.

Pretende-se desta forma produzir informação, disponibilizar e fazer uma avaliação crítica da natureza dessa mesma informação, provocar o aparecimento de projectos conjuntos entre museus e, sobretudo, desenvolver práticas de trabalho que potenciem a criação de exposições que possam ser utilizadas pelos vários intervenientes.

A Rede de Museus Rurais do Sul, que tem hoje e aqui, com a realização deste Colóquio, o seu inicio, é um projecto que procurará abranger os museus de carácter rural localizados desde o Algarve à Bacia do Tejo e às Beiras, que a ela se queiram associar, encontrando nós nesta geografia uma relação cultural, social e histórica, tantas vezes ignorada e compartimentada irracionalmente, como se aos Campos de Ourique não tivessem vindo invernar ao longo de séculos os rebanhos da Serra da Estrela, ou não fossem os ratinhos da bêra ou os serrenhos da serra do Algarve os braços imensos que ceifavam ciclicamente o “celeiro” de Portugal.

Mas este território de referência geográfica ou relação identitária, não deverá ser o único objecto desta Rede. Há uma responsabilidade social que todos nós temos perante a comunidade e que temos de assumir: a responsabilidade de não permitir o esquecimento.

E esse não é um objecto menor para esta rede de museus ou, se quisermos, para esta rede de museus e/ou espaços de representação museográfica.

Todos os dias perdemos homens e mulheres que nasceram no século XX e que viveram o século XX transportando muitas das memórias que cristalizadas pertencem à realidade ignorada de finais do século XIX. Todos os dias assistimos ao aniquilar de uma memória que é importantíssima para compreender a nossa realidade e os trilhos cruzados até chegarmos aqui. A evolução urbana dos sítios; as técnicas agrícolas pré-modernização dos anos 60; as práticas sociais derivadas da tipologia fundiária; o papel do indivíduo na comunidade trinitária do poder autoritário do Estado Novo; os saberes e técnicas de cultivo, algumas das quais com mais de dois mil anos.

Todos os dias assistimos ao desaparecimento irreversível de um mundo insubstituível e que não encontramos, nem encontraremos, em nenhum arquivo.

Todos os dias se apaga um pouco mais da memória de uma geração que viveu o Estado Novo, a guerra civil de Espanha, a II guerra Mundial, a pesca do bacalhau, a emigração a salto, a guerra colonial, o 25 de abril. As ceifas de sol a sol, o trabalho duro da pesca artesanal, a vida dupla de mineiro e ganhão, a incerteza do contrabando da sobrevivência. Memórias que são a essência cristalina de olhares vividos, sofridos, e pouco ou nada reflectidos por esse mesmo alguém que viveu esse “tem de ser” como se tudo aquilo tivesse sido algo natural que lhe estivesse reservado.

Mas foi esta geração, esta mesma geração de ganhões da eternidade, a maioria sabendo pouco mais do que fazer o seu nome, que transformou o país naquilo que conhecemos e, sobretudo, deixou para trás o país rural quase medieval dos anos cinquenta, e criou o espaço global como aquele em que hoje vivemos e que está bem representado na nossa diáspora.    

Esta Rede de Museus Rurais do Sul pretende registar, valorizar e dignificar a memória das “ruralidades” do Portugal do século XIX e XX que, de forma extraordinariamente rápida, está a desaparecer sem que nos diga tudo aquilo que precisamos de saber sobre esses tempos de memórias, de estórias e de História. Sem que nos traga os rostos daqueles homens e mulheres que vão desaparecendo todos os dias e, com eles, vimos desaparecer um passado que é a nossa raiz.

Pouco a pouco, dentro daquelas que são as dinâmicas que cada um possa criar e das parceiras que se possam estabelecer, pouco a pouco, dizia, a Rede de Museus pode criar, de forma pedagógica, formativa e informativa, interventiva, diria, um catálogo das ruralidades do Portugal do século XIX e XX. Porque estamos na comunidade, conhecemos os actores, podemos chegar mais facilmente à fala com eles. Porque temos a obrigação histórica, ética e social de resgatar e salvaguardar condignamente a nossa raiz.

Mas a questão fundamental é que necessitamos de vários olhares, de vários “sentir”, de geografias distintas para compreendermos a amplitude das géneses. Da microtoponímia, das práticas culturais, das técnicas de fazer, dos dizeres e dos cantares. E quantas vezes é nos pequenos movimentos migratórios das transumâncias, nas temporadas das ceifas, na rotatividade das festividades religiosas ou na sua hagiologia que encontramos a explicação para o tempo longo e transversal do mundo das ruralidades.

Chegamos a este colóquio com a perspectiva de ver nascer um projecto envolvente e mobilizador de museus, espaços musealizáveis ou estruturas associativas onde existam projectos em torno da valorização, preservação e dignificação da memória, com vista a criar um espaço de reflexão e encontro regular.
É esse o desafio que nos traz aqui hoje. O encontro regular. É por isso que gostaríamos de sair daqui, ao final do dia, com a certeza de que em Abril ou Maio a Rede de Museus Rurais do Sul terá o segundo colóquio num determinado lugar.
Desde logo, posso afirmar que nos é particularmente grato o número de participantes neste I Colóquio, para mais de geografias tão distintas que aqui estão presentes como Alcoutim ou Portimão, Avis ou Benavente, Grândola ou Moura. Assim como também é particularmente importante para nós ter aqui o Minom e a Rede de Museus do Distrito de Beja, potenciais fóruns de partilha e de colaboração num futuro próximo.   

Para terminar, não queremos deixar de explicar a fórmula encontrada para este I Colóquio. Duas sessões em que em cada uma delas teremos a intervenção de cada um dos museus génese da Rede. Paralelamente, o convite particular para quatro intervenções sobre temas muito específicos, mas que dizem muito ao grupo de museus que inicia aqui este desafio e, julgamos nós, a todos os museus cujas abordagens incidam sobre a memória recente e o envolvimento com a comunidade onde estão inseridos. Ao Dr. Fernando António Batista Pereira, ao Dr. Paulo Costa, ao Dr. Vitor Martelo e ao Dr. Carlos Pedro, um muito obrigado pela disponibilidade imediata que demonstraram para estar aqui connosco e trazerem alguns temas de particular importância para quem procura trabalhar na área da museologia, nos dias de hoje, onde às vezes é difícil a conjugação simétrica entre a necessidade de valorizar e dignificar a memória da comunidade e a necessária objectividade da intervenção no espaço museológico, enquanto estrutura de reflexo social, polo de construção de dinâmicas culturais e referência afectiva da comunidade onde se insere.
Finalmente, um agradecimento muito particular, porque se exige fazê-lo, ao João Branco e ao Valter Sousa, funcionários dos Serviços Socioculturais da Câmara Municipal de Castro Verde, pela forma como se envolveram neste projecto e conseguiram improvisar o impossível. Desde o fazer da sessão de hoje, aos Cadernos do Museu nº 3, que hoje serão aqui apresentados


Miguel Rego
Coordenador do Museu da Ruralidade