Muito Bom dia a todos
Em nome do Museu da Ruralidade, da Câmara
Municipal de Castro Verde e do Grupo de Trabalho de Criação da Rede de Museus
Rurais do Sul desejo-vos um bom dia e uma boa estadia nestas terras do Campo
Branco, no I Colóquio de Museus Rurais do Sul.
Há
alguns anos a trabalhar em temáticas ligadas à Ruralidade e ao mundo rural, seja
no âmbito do desenvolvimento local, seja da museologia, temos chocado insistentemente,
e perante a procura de informação sobre os mais diversos temas da história
recente, na inexistência de conhecimento suficiente, específico e objectivo, para
a região onde nos encontramos, sobre a temática que desenvolvemos e, sobretudo,
em torno das problemáticas emergentes de âmbito rural que são a base da
sociedade do interior em que vivemos.
Na
ausência de uma memória viva que clarifique as nossas necessidades informativas,
que nos diga “o como era naquele tempo”, falta-nos de igual modo o suporte do
saber universitário “do imediato”, cuja repercussão, raramente nos chega;
falta-nos
em cada museu, ou se quisermos nestes espaços de representação museográfica, já
que o conceito de museu torna-se cada vez mais afunilado e algo
aristocratizado, uma equipa suficiente para investigar, registar, mostrar;
falta
uma política de informação e de comunicação entre museus que nos permita saber
o que cada um, mesmo a nível regional, anda ou pretende fazer de forma a criar
laços de entreajuda que sejam paliativos para tanto deficit. E se, em algumas
iniciativas recentes, como são os casos da Rede de Museus do Distrito de Beja
ou o NUOME, são preenchidas algumas lacunas particulares, sobretudo no que
concerne à comunicação e às abordagens ao património imaterial, há um problema
de fundo que é necessário resolver e que passa, sobretudo pela questão do
método de trabalho e da regularidade do trabalho realizado.
No
passado dia 16 de Outubro, simbolicamente no dia primeiro da Feira de Castro,
juntaram-se em Entradas, no espaço do Núcleo da Oralidade do Museu da
Ruralidade, sete museus da nossa região, com o objectivo de discutir a criação
de uma rede informal de museus que tem como objecto principal o mundo rural e,
sobretudo, seja um instrumento de trabalho daqueles que trabalham a memória
recente, os seus actores e as suas geografias sociais, incluindo a diáspora.
Museu da Ruralidade (Castro Verde),
Museu do Trabalho Rural da Abela (Santiago do Cacém), Núcleo Museológico de
Alcaria de Javazes (Mértola), Núcleo Rural de Ervidel (Aljustrel), Museu da
Farinha (S. Domingos - Santiago do Cacém), Museu Arqueológico e Etnográfico de
Santa Clara-a-Nova (Almodôvar) e Museu Rural de Pias (Serpa) foram o grupo
génese desta Rede de Museus Rurais do Sul cuja filosofia se pretende que assente
na
realização de encontros/colóquios/reuniões de caracter trimestral ou
quadrimestral, onde cada museu apresenta um tema em que está a trabalhar; mostra, contextualiza, descreve uma peça; apresenta uma história de vida, o
estudo de uma fotografia, a exposição que está a preparar.
Pretende-se desta forma produzir
informação, disponibilizar e fazer uma avaliação crítica da natureza dessa
mesma informação, provocar o aparecimento de projectos conjuntos entre museus
e, sobretudo, desenvolver práticas de trabalho que potenciem a criação de
exposições que possam ser utilizadas pelos vários intervenientes.
A Rede de Museus Rurais do Sul, que tem
hoje e aqui, com a realização deste Colóquio, o seu inicio, é um projecto que procurará
abranger os museus de carácter rural localizados desde o Algarve à Bacia do
Tejo e às Beiras, que a ela se queiram associar, encontrando nós nesta
geografia uma relação cultural, social e histórica, tantas vezes ignorada e
compartimentada irracionalmente, como se aos Campos de Ourique não tivessem
vindo invernar ao longo de séculos os rebanhos da Serra da Estrela, ou não
fossem os ratinhos da bêra ou os serrenhos da serra do Algarve os braços
imensos que ceifavam ciclicamente o “celeiro” de Portugal.
Mas este território de referência geográfica
ou relação identitária, não deverá ser o único objecto desta Rede. Há uma
responsabilidade social que todos nós temos perante a comunidade e que temos de
assumir: a responsabilidade de não permitir o esquecimento.
E esse não é um objecto menor para esta
rede de museus ou, se quisermos, para esta rede de museus e/ou espaços de
representação museográfica.
Todos os dias perdemos homens e mulheres
que nasceram no século XX e que viveram o século XX transportando muitas das
memórias que cristalizadas pertencem à realidade ignorada de finais do século
XIX. Todos os dias assistimos ao aniquilar de uma memória que é importantíssima
para compreender a nossa realidade e os trilhos cruzados até chegarmos aqui. A
evolução urbana dos sítios; as técnicas agrícolas pré-modernização dos anos 60;
as práticas sociais derivadas da tipologia fundiária; o papel do indivíduo na
comunidade trinitária do poder autoritário do Estado Novo; os saberes e
técnicas de cultivo, algumas das quais com mais de dois mil anos.
Todos os dias assistimos ao
desaparecimento irreversível de um mundo insubstituível e que não encontramos,
nem encontraremos, em nenhum arquivo.
Todos os dias se apaga um pouco mais da
memória de uma geração que viveu o Estado Novo, a guerra civil de Espanha, a II
guerra Mundial, a pesca do bacalhau, a emigração a salto, a guerra colonial, o
25 de abril. As ceifas de sol a sol, o trabalho duro da pesca artesanal, a vida
dupla de mineiro e ganhão, a incerteza do contrabando da sobrevivência. Memórias
que são a essência cristalina de olhares vividos, sofridos, e pouco ou nada
reflectidos por esse mesmo alguém que viveu esse “tem de ser” como se tudo aquilo
tivesse sido algo natural que lhe estivesse reservado.
Mas foi esta geração, esta mesma geração
de ganhões da eternidade, a maioria sabendo pouco mais do que fazer o seu nome,
que transformou o país naquilo que conhecemos e, sobretudo, deixou para trás o
país rural quase medieval dos anos cinquenta, e criou o espaço global como aquele
em que hoje vivemos e que está bem representado na nossa diáspora.
Esta Rede de Museus Rurais do Sul pretende
registar, valorizar e dignificar a memória das “ruralidades” do Portugal do
século XIX e XX que, de forma extraordinariamente rápida, está a desaparecer
sem que nos diga tudo aquilo que precisamos de saber sobre esses tempos de
memórias, de estórias e de História. Sem que nos traga os rostos daqueles
homens e mulheres que vão desaparecendo todos os dias e, com eles, vimos
desaparecer um passado que é a nossa raiz.
Pouco a pouco, dentro daquelas que são
as dinâmicas que cada um possa criar e das parceiras que se possam estabelecer,
pouco a pouco, dizia, a Rede de Museus pode criar, de forma pedagógica,
formativa e informativa, interventiva, diria, um catálogo das ruralidades do
Portugal do século XIX e XX. Porque estamos na comunidade, conhecemos os
actores, podemos chegar mais facilmente à fala com eles. Porque temos a
obrigação histórica, ética e social de resgatar e salvaguardar condignamente a
nossa raiz.
Mas a questão fundamental é que
necessitamos de vários olhares, de vários “sentir”, de geografias distintas
para compreendermos a amplitude das géneses. Da microtoponímia, das práticas
culturais, das técnicas de fazer, dos dizeres e dos cantares. E quantas vezes é
nos pequenos movimentos migratórios das transumâncias, nas temporadas das
ceifas, na rotatividade das festividades religiosas ou na sua hagiologia que
encontramos a explicação para o tempo longo e transversal do mundo das
ruralidades.
Chegamos a este colóquio com a perspectiva de ver
nascer um projecto envolvente e mobilizador de museus, espaços musealizáveis ou
estruturas associativas onde existam projectos em torno da valorização,
preservação e dignificação da memória, com vista a criar um espaço de reflexão
e encontro regular.
É esse o desafio que nos traz aqui hoje. O
encontro regular. É por isso que gostaríamos de sair daqui, ao final do dia,
com a certeza de que em Abril ou Maio a Rede de Museus Rurais do Sul terá o
segundo colóquio num determinado lugar.
Desde logo, posso afirmar que nos é
particularmente grato o número de participantes neste I Colóquio, para mais de
geografias tão distintas que aqui estão presentes como Alcoutim ou Portimão,
Avis ou Benavente, Grândola ou Moura. Assim como também é particularmente
importante para nós ter aqui o Minom e a Rede de Museus do Distrito de Beja,
potenciais fóruns de partilha e de colaboração num futuro próximo.
Para terminar, não queremos deixar de explicar a
fórmula encontrada para este I Colóquio. Duas sessões em que em cada uma delas
teremos a intervenção de cada um dos museus génese da Rede. Paralelamente, o
convite particular para quatro intervenções sobre temas muito específicos, mas
que dizem muito ao grupo de museus que inicia aqui este desafio e, julgamos
nós, a todos os museus cujas abordagens incidam sobre a memória recente e o
envolvimento com a comunidade onde estão inseridos. Ao Dr. Fernando António
Batista Pereira, ao Dr. Paulo Costa, ao Dr. Vitor Martelo e ao Dr. Carlos
Pedro, um muito obrigado pela disponibilidade imediata que demonstraram para
estar aqui connosco e trazerem alguns temas de particular importância para quem
procura trabalhar na área da museologia, nos dias de hoje, onde às vezes é
difícil a conjugação simétrica entre a necessidade de valorizar e dignificar a
memória da comunidade e a necessária objectividade da intervenção no espaço
museológico, enquanto estrutura de reflexo social, polo de construção de
dinâmicas culturais e referência afectiva da comunidade onde se insere.
Finalmente, um agradecimento muito particular,
porque se exige fazê-lo, ao João Branco e ao Valter Sousa, funcionários dos
Serviços Socioculturais da Câmara Municipal de Castro Verde, pela forma como se
envolveram neste projecto e conseguiram improvisar o impossível. Desde o fazer
da sessão de hoje, aos Cadernos do Museu nº 3, que hoje serão aqui apresentados
Miguel Rego
Coordenador do Museu da Ruralidade